quarta-feira, 13 de junho de 2012

Era uma vez um muro que separava dois povoados completamente distintos: o povo do lado de cá e as inabaláveis pessoas do lado de lá. Reza a lenda que já chegaram a ser uma grande cidade, mas não prosperaram unidos e, por isso, acabaram emancipando-se e construindo o tal muro que representava a discórdia.

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O povo do lado de cá vivia na corda bamba. Eram verdadeiros equilibristas da vida, cambaleando o tempo todo entre a sanidade e a insanidade de seus pensamentos. Em termos factíveis, no entanto, sempre respeitaram os limites morais, além dos geográficos há muito impostos pelo convívio e também pela linha divisória.
 
Neste lado do muro as pessoas eram simples, modestas e orgulhavam-se de conquistar as coisas com muito trabalho e suor. O povo do lado de cá nunca soube de tudo e tampouco um dia aspiraram saber. Por ali, jamais alguém foi premiado com um Nobel.

Além disso, sob o ponto de vista demasiadamente crítico de alguns, eram um povo que andava literalmente na contramão das tendências. Para economizar, curtiam a praia no inverno e as montanhas no verão; comiam peru na Páscoa e cordeiro no Natal; aproveitavam as liquidações de verão p/ comprar as roupas no inverno.
 
É bem verdade que eles não se importavam com a opinião alheia, talvez por isso, nada os impedisse de quebrar as mais variadas regras de etiqueta como, por exemplo, gargalhar alto quando bem quisessem, comer pipoca com bala de goma na hora do almoço e de passear de chinelo em avenidas movimentadas e nada arborizadas.

Eram saudosistas ao extremo. Geração após geração, os pais, orgulhosos de seus ancestrais, contavam aos filhos a história daquele povoado - desde quando não havia nem rastro do muro. Apesar da discórdia e da barreira física que os mantinham separados, não demonstravam rancor em relação às pessoas do outro lado e nada os impedia de relembrar dos bons momentos vividos e de imaginar como teria sido se o muro nunca tivesse sido construído.
 
A fé era uma prerrogativa constante em suas vidas. Acreditavam em Deus, na Criação, muito embora tivessem uma profunda convicção de que também cada um deles deveria fazer a sua parte. Consequentemente, para as pessoas que moravam neste povoado, nenhuma força suprema as protegia de todo e qualquer mal. Se estavam todos bem era porque haviam de alguma forma conquistado tal merecimento - porque era dever de cada um construir a própria felicidade, respeitando a do próximo.
 
No entanto, quando não estavam todos bem, não viam mal algum em deixar transparecer seu estado de espírito - afinal, todos têm problemas e não há porque se envergonhar de demonstrar fraqueza nos momentos de dificuldade.
 
Este povo nunca foi imune aos percalços da vida e, corajosamente, jamais perdera a esperança.
 
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Já as inabaláveis pessoas do lado de lá acreditavam viver sob um escudo protetor divino e intransponível. Eram OS ESCOLHIDOS – pensavam assim. E em razão de tal crença criaram o lema do “nada de mal nos alcança”.
 
Apesar de não manterem contato com o povo do outro lado, frequentemente, tinham notícias dos seus vizinhos de muro.
- Ontem, do outro lado do muro, um trabalhador da construção civil caiu do 5° andar e morreu – leu a notícia em voz alta uma senhora de 77 anos sentada na cadeira da manicure.
- Que coisa... Ainda bem que fatos dessa natureza não acontecem com a gente, estamos blindados. Nada de mal nos alcança! Aleluia! – exclamou a moça loira que folheava desinteressadamente uma revista de moda.
 
Eram iluminados. Falavam em ocasiões. Entendiam de vinhos. Eram sentinelas das virtudes. Jamais perdiam o sono. - “Nada de mal nos alcança” -.
Eram pessoas cultas. Dinheiro algum lhes faltava. Almejavam grandes postos. Nunca eram pegos de surpresa por uma frente fria. Seus jardins floresciam o ano inteiro. – “Nada de mal nos alcança”-.

Assistiam aos outros que padeciam de proteção. Seus carros nunca estragavam. Todas as manhãs tinham gosto de domingo. Nunca se arrependiam de nada. Suas casas não precisavam ser gradeadas. – “Nada de mal nos alcança” -.
Dominavam quatro ou cinco idiomas. Seu trânsito nunca engarrafava. Ninguém infringia a lei. Dor de cabeça alguma lhes incomodava. Eram exímios jogadores. – “Nada de mal nos alcança” - .
 
...

Ninguém nunca percebeu mas desde que o muro fora erguido, aquele conglomerado de tijolos vinha sendo o local escolhido por gerações de joôes-de-barro que ali se sucediam na construção de seus novos lares.
 
Sempre que um casal de joão-de-barro falecia, uma nova dupla imediatamente tomava o posto do anterior e, aos poucos, moldava sua nova casa.
 
Discretos e silenciosos, ano após ano, nos momentos de descanso, esses pássaros adquiriram o hábito de ficar observando o movimento das pessoas que habitavam os dois povoados.
 
Achavam curiosas as atitudes, duvidavam de algumas motivações e surpreendiam-se com as nuances de verdade que por vezes só eles percebiam irradiarem dos olhares daqueles que passeavam despreocupadamente por ali.
- Ainda bem que não somos humanos – num belo dia suspirou e filosofou a passarinha.
- Você está louca, meu bem? Eles estão anos-luz na nossa frente – retrucou o passarinho indignado.
 
Antes de responder, a passarinha ainda teve tempo de agradecer ao bom Deus por ter nascido ave e ter ao seu lado, João, seu companheiro. Feito isto, concluiu:
- Sim, mas de quê adianta tanta evolução? Nunca serão verdadeiramente livres e mesmo que lhes fossem concedidas asas, não saberiam porque e nem p/ onde voar.


A propósito...
 
I told you
That we could fly
'Cause we all have wings
But some of us don't know why.

2 comentários:

Marcio JR disse...

Quando comecei a ler esta belíssima parábola, fiquei imaginando a segunda parte, justamente aquela em que você falaria sobre os Inabaláveis. Lembrei-me, de imediato, de algo que meu pai sempre falou e me mostrou.

As crianças ricas têm seus apartamentos limpinhos, seus hábitos de higiene apurados e e caros, suas boas e quentes roupas, médicos ultra-caros, etc. Já uma criança de favela brinca no chão e come lixo. Coloque as duas, lado a lado, no barro, e veja qual sofrerá os efeitos desta ação. Por certo, a criança rica pegará uma bela pneumonia.

Não que o que escrevi acima tenha algo com seu texto (ou talvez tenha), pois o final me surpreendeu também, mas cabe muito bem para mostrar que ninguém está imune a tudo, e que ora ou outra, até os Inabaláveis são afetados.

Já quanto à questão da separação, é um fato incrível mesmo. Será que a mistura entre eles resolveria, ou os Inabaláveis tentariam dominar e sobrepor os habitantes do outro lado? Sim, pois a falta de humildade os domina, e por certo, a ganância iria imperar também.

Asas só servem para quem tem espírito livre. E sabe? Quando o espírito é livre, sequer asas precisamos, pois temos os sonhos, e eles nos fazem voar alto.

Neca, minha querida amiga. Adorei a parábola. Adorei a casa nova. Felicidades pra você, mocinha.

Bjs.

Marcio

13 de junho de 2012 às 15:45
Neca disse...

Casa nova na tentativa de sacudir a poeira!!
Obrigada pela visita!!! Beijin

13 de junho de 2012 às 18:12

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